17/12/2020
por Maria Isabel de Oliveira
Psicanalista
Sócia Fundadora da AkasA Formação & Conhecimento

Durante as primeiras décadas da pesquisa nos laboratórios do sono, a teoria mais proeminente sobre o sonhar era a psicanalítica. Para Freud, o sonho é um produto mental altamente significativo resultante de processos mentais particulares sob as circunstâncias do sono. 

Na perspectiva psicanalítica, o significado do sonho não se apresenta no ”conteúdo manifesto” (o sonho lembrado pelo sonhador), mas,  é encontrado nos ”pensamentos latentes do sonho”, alguns dos quais são inconscientes. Os pensamentos latentes podem ser descobertos por processos de associação livre, ligando-os aos elementos manifestos do sonho. Sob esta ótica, o  conteúdo latente inclui desejos instintivos conflitantes  (sexuais ou agressivos) originários da infância, que seriam a força motriz para o sonho. Assim, o sonho seria uma tentativa de realização desses desejos. 

Ao mesmo tempo, o sonho contém ”restos diurnos”, processos de pensamento típicos do dia anterior, que são o ponto de contato entre os desejos inconscientes e as preocupações atuais. Os pensamentos latentes dos sonhos seriam transformados no sonho manifesto através do processo primário, uma forma primitiva de pensamento predominante nos sonhos. O processo primário inclui a condensação; a combinação ou fusão de dois ou mais elementos em um único; e o deslocamento, que transfere a ênfase de um elemento para um outro. Processos de simbolização também estão envolvidos na transformação de pensamentos latentes em sonho manifesto. Os mecanismos do processo primário servem para atender a necessidade de um disfarce, ou censura, dos desejos conflitantes, para que não promovam uma ansiedade excessiva e perturbem o sono, pois, a censura é diminuída, mas não ausente durante o sono.

Portanto, a atividade mental passa por um processo regressivo que resulta na representação do sonho, perceptível, como uma alucinação, enquanto a atonia muscular, típica do sono REM, bloqueia a atividade motora, inibindo a atuação onírica.

Já se sabe que não sonhamos exclusivamente no sono REM. Mas, sem dúvida o sono REM é um facilitador do sonho carregado de simbolismo para a vida do sonhador.

A ocorrência de sonhos é, em grande parte, pré-programada e não apenas baseada num desejo pulsional despertado durante o sono. Há muita complexidade no estudo do sono e dos sonhos, envolve o funcionamento mental, cognitivo e físico do organismo, elementos inconscientes e acontece entre aqueles que estão dormindo. 

Em uma pesquisa conduzida por Shevrin e Fisher, foi utilizado um estímulo subliminar especial  antes do sono para checar os níveis de respostas do processo primário e secundário. As pessoas seriam despertadas durante o sono REM e NREM, de maneira a se mensurar a resposta com relação a estimulação subliminar. Identificaram que as pessoas despertadas após o sono REM apresentavam recordação associada ao processo primário do estímulo subliminar e as pessoas despertadas no sono NREM apresentavam recordação associadas ao processo secundário. Resultados  consistentes com a visão de um nível diferente de processamento cognitivo no sonho. O uso de estimulação subliminar forneceu um meio para rastrear influências inconscientes nos sonhos.

Outro experimento realizado para entender  a natureza e o processo de sonho se deu expondo os participantes a diferentes tipos de estimulação durante ou antes do sono e os efeitos no sonho foram observados. Verificou-se que os estímulos dados durante o sono REM puderam ser incorporados aos sonhos, seja de forma direta ou transformada. Dement e Wolpert identificaram que a frequência com que os participantes  incorporaram os diferentes tipos de estímulos dados durante o sono REM variou de acordo com o tipo de estímulo. Um spray de água na pele foi o estímulo mais frequentemente incorporado, em uma frequência de 42% dos participantes. Um exemplo de incorporação direta foi o sonho de ser esguichado por alguém e uma incorporação indireta foi o sonho de um telhado vazando.

Dement, também pesquisou o efeito da privação do sono, muitas vezes referido como privação de sonhos, quando ainda se pensava que o sonho ocorria exclusivamente no sono REM. Identificou que um sujeito privado de sono REM faz tentativas cada vez mais frequentes de entrar nessa fase; após o término do período de privação do sono REM, o sujeito mostra um aumento compensatório no tempo de sono REM, chamado de rebote de REM. Isso foi tomado como prova de que o sono REM e o sonho desempenham uma função vital na saúde do organismo.

Nos primórdios desses estudos, chegou-se a pensar que os sujeitos privados de sonhos se tornariam psicóticos, e os achados iniciais eram vistos como congruentes com essa expectativa. No entanto, essa visão não foi suportada por trabalhos posteriores realizados com melhor metodologia experimental; e um estudo de Vogel demonstrou melhora clínica em pacientes com depressão endógena quando submetidos a uma privação prolongada do sono REM.

Uma variedade de estudos em gatos e ratos propiciou evidências de que a privação prolongada de sono REM pode levar a um comportamento hipersexualizado, hiper agressivo além de um aumento da estimulação intracraniana, fatores esses têm sido interpretados como suporte à visão de que sonhar está ligado a impulsos básicos e à busca de prazer. 

Há muita divergência no campo da pesquisa com relação a teoria psicanalítica do sonhar, alguns a repudiam por considerar incompatível com os achados da neurobiologia ou nos sonhos coletados em laboratório, porém, outros consideram os achados das pesquisas  surpreendentemente favoráveis. Não se pode negar a riqueza explicativa da teoria psicanalítica e sua utilidade clínica, sendo assim, mantém-se a necessidade de aprofundar as pesquisas  para melhor entender a psicologia do sonho. Desenvolvimentos recentes na teoria psicanalítica, na compreensão do conflito, nas relações de objeto e do narcisismo, podem, por sua vez, complementar a ênfase original dos impulsos pulsionais e no fornecimento de ferramentas explicativas para a compreensão dos sonhos.

  1. Physiology and Psychology of Dreams – Alan S. Eiser, Ph.D, April 2005 Seminars in Neurology 25(1):97-105
  2. Shevrin H, Fisher C. Changes in the effects of a waking subliminal stimulus as a function of dreaming and nondreaming sleep. J Abnorm Psychol 1967;72:362–368.
  3. Dement W, Wolpert EA. The relation of eye movements, body motility, and external stimuli to dream content. J Exp Psychol 1958;55:543–553.
  4. Vogel GW, Thurmond A, Gibbons P, et al. REM sleep reduction effects on depressive syndromes. Arch Gen Psychiatry 1975;32:765–777.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *